segunda-feira, 30 de março de 2015

Incurável



Observada à distância, recebeu o diagnóstico: sofria de males de insuficiência. Disseram ter havido boa avaliação dos sintomas e... pimba! Só podia ser isso!
- Males de insuficiência, moça. Receio não haver cura.
Respirou pela metade. Olhou ao redor pela metade. Sorriu pela metade. E com medo de proferir palavras pela metade, voltou a fechar a boca escancarada pela metade. Levantou-se e partiu. Vale lembrar, pela metade.
Tinha os cabelos molhados numa liberdade forjada, e caminhava de um jeito diferente. Numa dança incomum de quem tinha seu próprio ritual de felicidade, seu próprio ritmo, seu próprio mal.
Sim, era verdade. Sofria de males de insuficiência. Já o sabia antes mesmo que lhe dissessem, mas quem não o tinha? Será que quem a observava à distância, também não a observava pela metade? Será que seu diagnóstico também não era parcial?
- Sofro de males de insuficiência.
E sentada num café, confessou a um conhecido que, na verdade, lhe era bastante estranho. Ele lhe olhou a contragosto e nada disse. Foi quando ela percebeu.
Percebeu que pela metade era seu inteiro. Percebeu que insuficiência era melhor do que indiferença.

Por Jenifer Lima

segunda-feira, 23 de março de 2015

Bagagem



Continuou com o torpor entediante das vontades não atendidas, das noites que não são noites, dos dias que não são dias, do tempo que é apenas o passar de chinelo arrastado das horas vazias.
Continuou com a crise das existências perdidas, da vida que cozinha corações ao molho da indiferença, do tilintar das taças que brindam a hipocrisia.
Continuou. Andava sem rumo, sem dinheiro, com bagagem.
Até que não quis mais continuar.
Parou.
Olhou.
Trancafiou.
Guardou a insanidade daquilo que para, repara e acaba. Manteve em si a intensidade do que seca, resseca e encerra.
Do que falava, se calou. Do que calava, pronunciou. Do que odiava, amou. E do que amava...
Continuou.

Por Jenifer Lima