domingo, 11 de outubro de 2015

Dipirona


Cantarolo baixinho enquanto perpasso os dedos nas lombadas dos muitos livros de uma das minhas estantes. Estou absorta, mas percebo tua presença ao meu lado, que me olha com um pequeno vinco entre as sobrancelhas. Temido vinco. Quero tirar os dedos de um livro de capa dura e colocar sobre tua pele macia, desfazer o vinco, refazer teu sorriso, fazer de conta que esse gesto faz sentido. Não faz. O vinco continuará ali.
Há dois meses, encontramos um iceberg daqueles dignos de filme com Jack e Rose. Tentei desviar. Batemos de cabeça e não há dipirona no mundo que suma com a dor. Ontem à noite, enquanto eu me livrava do resto de gelo, você fazia questão de congelar este vinco na testa oleosa, perto das sobrancelhas bonitas. Quero coragem para deixar de olhar os livros na estante e te dizer bem baixinho o quanto eu gosto da cor de folha seca das suas sobrancelhas, mas a coragem ficou junto com o iceberg no oceano das tristezas. Meu cérebro me censura pelo melodrama dos pensamentos.
- Eu vou embora.
- Eu sei.
E sei mesmo, tanto é que já tomei aquele tal dipirona, tanto é que deixei suas coisas separadas, tanto é que não consigo olhar para as suas sobrancelhas sem perceber que estou como elas. Seca.
- Eu disse que vou embora.
- E eu disse que eu sei.
Quero dizer algo mais inteligente, mas então nós seríamos o primeiro casal com término culto, assim como fomos o primeiro casal a usar gelo para causar a dor e não para adormecê-la. Retiro um livro de autoajuda com um título parecido com “Cola para corações quebrados” e te entrego como quem devolve um rim para um doador egoísta. Você o pega e disfarça um sorriso. Nosso primeiro livro para nosso último segundo. Meu melodrama me assusta mais uma vez.
- Não vai precisar dele?
- Não vai funcionar.

Você foi embora. Levou o livro e a cola. Deixou o gelo e uma cartela vazia de analgésicos inúteis. Eu já sabia.

Por Jenifer Lima