quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Coração de bruxa


Tenho um pequeno medo da vida sempre que me dou conta de que você não está mais aqui. Me dou conta disso todos os dias e, portanto, tenho um frequente medo da vida. Quando eu era criança, odiava ficar sozinha em casa, justamente por ficar acompanhada do medo da vida. Hoje eu acho tudo isso bastante clichê. É que me acostumei à solidão e aos clichês. Uma vez, falei pra minha coleguinha da escola que contos de fada eram clichês e ela me olhou como se eu tivesse duas cabeças. O que, na verdade, eu tenho. Tenho a minha cabeça e a cabeça da menina que eu queria ser e não sou. 
Há três anos atrás, me disseram que eu não tinha coração. Por via das dúvidas, comprei cinco. Um morreu asfixiado, o outro foi atropelado, o terceiro foi esfaqueado e teve um que morreu de saudade dos outros três. O último eu não quero mais não. Pode levar embora. Ele está ali debaixo da cama com aquele medo clichê da vida, sabe? Sério, pode levar. A minha coleguinha disse que não sabia o que era clichê, mas que eu podia ficar com o papel de princesa na nossa brincadeira. Pra ser sincera, eu quero mesmo é o papel da bruxa, principalmente aquela que tranca amores na torre mais alta do castelo! Corações de bruxas com duas cabeças não morrem, certo?

Por Jenifer Lima

domingo, 14 de setembro de 2014

Batom


Decidi que hoje vou dormir de batom. Ele estaria intacto, não fosse a falha bem ao centro, onde coloquei o canudo do refrigerante. Provavelmente irei manchar os lençóis e acordar nada apresentável, mas hoje eu vou dormir de batom. Veja bem, eram aproximadamente 15 minutos para deixar os lábios do jeito que me agrada. Hoje demorei quase cinco e embora o resultado tenha sido parecido, ninguém percebeu. Ninguém nunca percebe e é provável que da próxima vez eu demore apenas 3 minutos. 
Lápis de boca, esfumaçado, batom número 1, batom número 2, espalhada básica e limpar os cantos. Pronta. Você me olhava e acendia as sobrancelhas me deixando envergonhada. Ao perceber, você exagerava na reação, adorando me ver revirar os olhos. Como de costume, você me abraçava e vinha me beijar e eu... bem, automaticamente eu virava o rosto e era a sua vez de revirar os olhos. Eu não havia demorado tanto para que você borrasse meu batom em um segundo. Eu te dava um selinho de leve e você lamentava, mas enquanto conversávamos, seu olhar não se decidia entre meus olhos ou minha boca. Ao final da noite, meu batom tinha misteriosamente sumido. 
Hoje eu coloquei a mesma combinação que usei num dos nossos encontros, quando eu ainda chorava pela dor de outro alguém e nem imaginava que aquilo era um encontro. Boba. Devia ter te deixado borrar o batom desde aquele dia. Como eu disse, hoje vou dormir de batom. Ele estaria intacto, não fosse a falha bem ao centro, onde coloquei o canudo do refrigerante. Hoje ninguém reparou na cor que eu estava usando, nem em como eu faço de tudo para preservá-lo até o fim da noite. Hoje ninguém demorou o olhar nos meus lábios, nem se perdeu por lá enquanto eu falava. Hoje ninguém irá insistir para borrá-lo, nem me fazer esquecer que o estou usando quando respirar no meu pescoço. Hoje não vai ter você. 
Então me levanto e volto para casa. O sorriso estaria intacto, não fosse a falha bem ao centro do peito, onde te coloquei.

Por Jenifer Lima