Cantarolo baixinho
enquanto perpasso os dedos nas lombadas dos muitos livros de uma das minhas estantes.
Estou absorta, mas percebo tua presença ao meu lado, que me olha com um pequeno
vinco entre as sobrancelhas. Temido vinco. Quero tirar os dedos de um livro de
capa dura e colocar sobre tua pele macia, desfazer o vinco, refazer teu
sorriso, fazer de conta que esse gesto faz sentido. Não faz. O vinco continuará
ali.
Há dois meses, encontramos
um iceberg daqueles dignos de filme com Jack e Rose. Tentei desviar. Batemos de
cabeça e não há dipirona no mundo que suma com a dor. Ontem à noite, enquanto
eu me livrava do resto de gelo, você fazia questão de congelar este vinco na
testa oleosa, perto das sobrancelhas bonitas. Quero coragem para deixar de
olhar os livros na estante e te dizer bem baixinho o quanto eu gosto da cor de
folha seca das suas sobrancelhas, mas a coragem ficou junto com o iceberg no
oceano das tristezas. Meu cérebro me censura pelo melodrama dos pensamentos.
- Eu vou embora.
- Eu sei.
E sei mesmo, tanto é
que já tomei aquele tal dipirona, tanto é que deixei suas coisas separadas,
tanto é que não consigo olhar para as suas sobrancelhas sem perceber que estou como
elas. Seca.
- Eu disse que vou
embora.
- E eu disse que eu
sei.
Quero dizer algo mais
inteligente, mas então nós seríamos o primeiro casal com término culto, assim
como fomos o primeiro casal a usar gelo para causar a dor e não para
adormecê-la. Retiro um livro de autoajuda com um título parecido com “Cola para
corações quebrados” e te entrego como quem devolve um rim para um doador
egoísta. Você o pega e disfarça um sorriso. Nosso primeiro livro para nosso
último segundo. Meu melodrama me assusta mais uma vez.
- Não vai precisar
dele?
- Não vai funcionar.
Você foi embora.
Levou o livro e a cola. Deixou o gelo e uma cartela vazia de analgésicos
inúteis. Eu já sabia.
Por Jenifer Lima